Créditos de biodiversidade: Uma Solução Promissora de Financiamento para Agricultura Sustentável e Livre de Desmatamento

Imagens cedidas pelo Instituto Internacional para a Sustentabilidade (IIS). 

As mudanças no uso da terra são um dos principais fatores da perda de biodiversidade em ambientes terrestres, principalmente pela degradação e conversão das áreas de vegetação nativa para usos alternativos, como a agropecuária (Díaz et al., 2019). Dentre os impactos dessas mudanças, destacam-se o aumento das emissões e a redução do sequestro de gases de efeito estufa (SEEG, 2023), além da perda de serviços ecossistêmicos que levam a uma diminuição da resiliência dos ecossistemas diante dos efeitos das mudanças climáticas. Com disso, destaca-se a importância de ações não só para evitar o desmatamento e seus impactos diretos e indiretos sobre a biodiversidade, mas também de implementar sistemas agrícolas que sejam sustentáveis e livres de desmatamento, de forma a identificar caminhos possíveis para viabilizar o desenvolvimento do setor agropecuário em paralelo à conservação da biodiversidade. 

Além dos problemas com o desmatamento ilegal, o Brasil possui 110,4 Mha de vegetação nativa que poderiam ser desmatados legalmente (PLANAFLOR, 2021). Somente no MATOPIBA (região composta por partes do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), atual fronteira agrícola do país, foram identificados 10 Mha de vegetação nativa em áreas com alta aptidão para a agricultura que estão sob risco de desmatamento porque encontram-se fora de áreas protegidas (Rudorff et al., 2020). Uma das estratégias para evitar o desmatamento destas áreas pode ser a implementação de programas de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA). No MATOPIBA, o recebimento de um PSA foi apontado por proprietários(as) rurais como o principal motivo para conservar o excedente de vegetação nativa em suas propriedades, ou seja, aquelas áreas que poderiam ser desmatadas legalmente (IIS-Rio, 2023). Entretanto, dependendo das exigências dos programas, como a garantia de permanência através da conversão das áreas em reservas particulares do patrimônio natural (RPPN), os valores exigidos pelos(as) proprietários(as) rurais podem exceder o custo de oportunidade da terra, representando um desafio para sua implementação e manutenção. 

Uma possível solução para este gargalo seria adicionar valor à área que está sendo conservada por meio da geração de créditos de biodiversidade.  Apesar das discussões a respeito desse tema ainda estarem em um estágio muito inicial, em grande parte por conta dos desafios para a sua implementação, este instrumento econômico representa uma alternativa promissora para financiar ações que resultem em benefícios mensuráveis para a natureza e a biodiversidade, incluindo a preservação de espécies, ecossistemas e habitats naturais, podendo ser um incentivo para a conservação dessas áreas. Créditos de biodiversidade consistem em certificados de um resultado positivo de que uma área contribui para a conservação da biodiversidade, sendo este resultado durável e adicional ao que teria ocorrido caso a área tivesse sido submetida a outro tipo de uso ou manejo (Biodiversity Credit Alliance, 2024). Sendo assim, áreas conservadas e/ou com manejo sustentável podem gerar créditos de biodiversidade, desde que validadas tecnicamente por meio de auditorias independentes. O surgimento de mercados voluntários para comercialização desse tipo de crédito representa uma oportunidade importante para a prevenção e mitigação de impactos na natureza, através do financiamento de resultados mensuráveis e verificáveis relacionados à biodiversidade (World Economic Forum, 2022).  

Os créditos podem ser gerados por instituições privadas, proprietários de terras, organizações não-governamentais, ou qualquer tipo de entidade capaz de gerenciar, mensurar e monitorar a biodiversidade. As melhorias na biodiversidade podem ser medidas de várias maneiras, como por meio da comparação com um local de referência, que pode ser uma área protegida com o mesmo ecossistema e/ou espécie de interesse, para garantir que os níveis de biodiversidade estão melhorando devido aos projetos ou manejos implementados. Esses créditos são então comprados e vendidos em transações de mercado, e os fundos obtidos são devolvidos aos gestores da biodiversidade, criando um ciclo sustentável de financiamento para a conservação ambiental. 

Além dos benefícios para a natureza, os créditos de biodiversidade oferecem uma oportunidade para empresas demonstrarem estratégias de impacto ambiental positivo ligadas a investimentos na conservação da biodiversidade e ecossistemas. Essas medidas conciliam aspectos ambientais, econômicos e sociais ao apoiar a sociedade na mitigação da crise climática global, contribuir para a viabilidade empresarial a longo prazo, além de abrir novas oportunidades de negócios (Biodiversity Credit Alliance, 2023). Conforme sumarizado pelo World Economic Forum (2023a), os créditos de biodiversidade podem agregar valor às empresas de cinco formas inter-relacionadas: 

  1. Garantia de qualidade: Apoiar a garantia de qualidade para empresas que compram créditos de carbono baseados na natureza, proporcionando benefícios de biodiversidade, desde que sejam cumpridos critérios rigorosos de adicionalidade; 

  2. Acesso sustentável: Permitir que as empresas garantam o acesso sustentável a serviços ecossistêmicos, como polinização, proteção contra inundações e saúde do solo; 

  3. Contribuição corporativa: Demonstrar uma contribuição corporativa para os objetivos globais estabelecidos no Global Biodiversity Framework (GBF), ajudando as empresas a construírem uma reputação positiva de sustentabilidade entre funcionários, investidores e clientes; 

  4. Produtos sustentáveis: Permitir que as empresas criem produtos que incluam melhorias na natureza, ajudando a satisfazer a demanda dos clientes por resultados naturais, garantindo a sustentabilidade de seus produtos; 

  5. Responsabilidade pelos impactos: Assumir a responsabilidade pelos impactos na biodiversidade que permanecem após a tomada de medidas alinhadas com a hierarquia de mitigação para "evitar, reduzir, restaurar e regenerar". 

Como a queda da biodiversidade representa uma ameaça para a agricultura, a cadeia de commodities deveria ser uma das principais demandantes no mercado voluntário de créditos de biodiversidade. A adoção desse instrumento econômico, a partir de uma rede de ações integradas e com a participação de múltiplos atores, pode trazer inúmeros benefícios, incluindo a criação de valor para as empresas ao apoiar resultados positivos para a natureza alinhados com as preferências de consumidores cada vez mais exigentes. No cenário atual de preocupação com os recursos naturais, demonstrar um bom desempenho ambiental pode se tornar uma ação estratégica, uma vez que a sociedade civil e as instituições financeiras esperam cada vez mais que as empresas divulguem de forma transparente seus impactos, abordem a perda da natureza e contribuam para atingir as metas globais de biodiversidade (World Economic Forum, 2023b). O fornecimento de produtos e serviços agrupados com créditos de biodiversidade oferece aos consumidores um meio de apoiar diretamente resultados positivos para a natureza, constituindo uma forma eficaz de comercialização de créditos de biodiversidade. 

Para garantir créditos de biodiversidade de alta qualidade e integridade, vários aspectos precisam ser considerados, incluindo governança, transparência e regulamentação; e evidências de resultados que sejam mensuráveis e monitoráveis. Nesse contexto, um aspecto fundamental que deve ser destacado é a qualidade científica e o rigor metodológico utilizado para quantificar as mudanças na biodiversidade e/ou na integridade dos ecossistemas. É especialmente importante ter um padrão de referência que defina a integridade dos créditos de biodiversidade e os resultados associados, bem como sistemas que permitam aos compradores fazerem declarações de credibilidade. Os mecanismos de revisão devem, por exemplo, incorporar critérios relativos à avaliação dos impactos ou benefícios para povos e comunidades tradicionais. 

Aprendendo com a experiência dos mercados de carbono e, em particular, com o Conselho de Integridade para Mercados Voluntários de Carbono (ICVCM), fica clara a importância de processo de revisão/avaliação transparente, independente e rigoroso, para padrões e metodologias de créditos. ICVCM desenvolveu os dez Princípios Fundamentais de Carbono (CCP), baseados na ciência para identificar créditos de carbono de alta qualidade que se tornaram referência global para a integridade do mercado voluntário de carbono e contribuem para os objetivos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU e do Acordo de Paris. Como a quantificação da biodiversidade é mais complexa do que a do carbono, esse mercado exigirá maior clareza sobre as dimensões da biodiversidade que estão sendo medidas e rigor científico dos métodos usados para quantificar essa complexidade em unidades que sejam consistentes, estáveis e comparáveis.  

Portanto, o mercado de créditos de biodiversidade deverá incorporar lições da experiência do mercado de carbono, ou correrá o risco de enfrentar problemas como créditos de baixa integridade e qualidade, fraca procura e oferta, absorção lenta, custos elevados e falta de resultados. Estabelecer a credibilidade científica pode desbloquear o potencial dos créditos de biodiversidade para contribuir significativamente para as metas dos acordos de Paris e Kunming-Montreal (Swinfield et al., 2024) e, no caso do Brasil, contribuir para o financiamento de uma agricultura livre de desmatamento.

* Fernanda D. Gomes é Pesquisadora do Instituto Internacional para Sustentabilidade; Eduardo Neto é Pesquisador do Instituto Internacional para Sustentabilidade; Juliana Almeida-Rocha é Gerente técnico-científica do Instituto Internacional para Sustentabilidade.

Referências:

BCA. Definition of a Biodiversity Credit. Issue Paper No. 3 Biodiversity Credit Alliance (BCA) 22p (2024). 

BCA. Demand-side Sources and Motivation for Biodiversity Credits. Issue Paper No. 1. Biodiversity Credit Alliance (BCA) 33p (2023). 

CONVENTION ON BIOLOGICAL DIVERSITY, Kunming-Montreal Global Biodiversity Framework, 6 September (2023) https://www. cbd.int/gbf/. 

DÍAZ, S. et al. Pervasive human-driven decline of life on Earth points to the need for transformative change. Science. 366 (2019). 

IIS-Rio. Mapas mentais sobre mudança de uso do solo no MATOPIBA. Instituto Internacional para Sustentabilidade (IIS). Rio de Janeiro, RJ, 177p (2023). 

PLANAFOR. Mapeamento de estimativas de déficit de vegetação nativa em áreas de reserva legal e de proteção permanente e excedente de reserva legal. Projeto Planaflor – Rio de Janeiro, RJ, 6, 345p (2021). 

RUDORFF, B. et al. Análise Geoespacial da Soja no Bioma Cerrado: Dinâmica da Expansão | Aptidão Agrícola da Soja | Sistema De Avaliação Para Compensação Financeira: 2001 a 2019. Sumário executivo. Florianópolis: Agrosatélite Geotecnologia Aplicada Ltda, (2020). 

SEEG (Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de Efeito Estufa). OC - Observatório do Clima, Sistema de Estimativa de Emissão de Gases do Efeito Estufa – SEEG (2023). 

SWINFIELD, T. et al. Nature-based credit markets at a crossroads. Nature Sustainability (2024). 

WORLD ECONOMIC FORUM. Biodiversity Credits: A Guide to Support Early Use with High Integrity. White Paper 34p(2023b). 

WORLD ECONOMIC FORUM. Biodiversity Credits: Demand Analysis and Market Outlook. Insight Report 45p (2023a). 

WORLD ECONOMIC FORUM. Biodiversity Credits: Unlocking Financial Markets for Nature-Positive Outcomes. Briefing Paper 13p (2022). 

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